Dom Quixote – Miguel de Cervantes

03_quixote_interlúnioUma surpresa que tive ao iniciar a leitura de Dom Quixote foi que se trata na verdade de 2 livros, de uma série não planejada pelo espanhol Miguel de Cervantes. O primeiro foi publicado em 1605, com o título de O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha e o segundo, apenas em 1615, chamando-se Segunda parte do engenhoso cavaleiro Dom Quixote de la Mancha. São livros um pouco diferentes no estilo, mas ambos com um caráter  de experimentação de um novo gênero, um embrião do que ia ser chamado mais tarde de romance.

No primeiro o autor agiu com mais liberdade. É possível encontrar erros de continuidade (não se sabe se propositais), a escrita é solta e cheia de humor, os personagens e as situações referenciam as novelas de cavalaria o tempo todo e histórias paralelas são contadas ou presenciadas ao longo de todo o livro, dando um clima de histórias dentro de histórias. Neste os personagens vivem praticamente na estrada, buscando as aventuras conforme vão cavalgando, e as pessoas que vão encontrando no meio do caminho tomam mais tempo de narrativa que os próprios protagonistas.

Já no segundo Cervantes parece ter se preocupado mais com a forma, a estrutura narrativa é mais bem amarrada e o humor continua, talvez um pouco menos sutil. Aqui os heróis têm mais destaque, especialmente Sancho Pança, e ficam em grande parte sob o teto de alguém hospitaleiro, longe dos perigos das estradas, mas mais perto de troças maldosas. As aventuras, em vez de surgirem do acaso, geralmente aparecem como farsa.

02_quixote_interlúnioIsso acontece porque o segundo livro é uma espécie de Dom Quixote do primeiro, isto é, assim como o primeiro livro faz referência às novelas de cavalaria, o segundo livro faz referência ao primeiro livro de Dom Quixote. Numa intrincada rede metaficcional, os personagens do segundo são leitores do primeiro e quando se deparam com as figuras de Dom Quixote e Sancho Pança, muitos querem se aproveitar deles para que vivam as mais disparatadas situações, o que deixa grande parte do livro como um palco onde os heróis são meras marionetes.

Além disso, o narrador dos livros é um caso à parte, pois ele conta a história através de uma tradução da obra de um certo autor chamado Benengeli, e em alguns momentos têm-se até a opinião do tradutor adentrando a narrativa, causando a sensação de que se trata de uma história que poderia ter várias versões, mas que esta foi a que calhou de estar ali. Por toda a obra temos referência ao próprio ato de narrar a história, nos lembrando sempre seu caráter ficcional.

Dom Quixote é uma pessoa dos livros. Mais do que isso, ele quer, como aquela imagem que temos dos desenhos animados infantis, entrar no livros e se tornar personagem deles. Para isso ele decide viver o que deseja. Como uma criança que vê o que quer ver e brinca com a imaginação que possui, o fidalgo torna-se cavaleiro andante. Com a melhor das boas intenções Quixote quer retomar valores perdidos, grandes significados que não existem mais, e obviamente é tido como louco. Ainda assim dá para vê-lo também como aquele que inventa a si mesmo, que busca ser o que quer ser, mesmo que tudo não passe de ficção.

Sancho Pança, por outro lado, tem os pés bem calcados no chão e sua pobreza lhe suscita a busca por comida, conforto e dinheiro. Ora interesseiro, ora amigo, Sancho é sempre um alívio à melancolia de Quixote, com seus inúmeros provérbios e sabedoria popular que garantem os risos do leitor.

Dom Quixote é uma obra sobre inventar histórias, sobre encenação da realidade, sobre um leitor que quer viver o que seus personagens queridos viveram e com isso tornar-se autor de si mesmo enquanto personagem. Quixote é como se fosse um escritor que, em vez de escrever um livro, vive-o constantemente e que nos faz pensar no que nossa realidade tem de autêntico e de farsa, já que grande parte da vida pode ser vivida seguindo ilusões que tomamos como verdade.

O inventário das coisas ausentes – Carola Saavedra

interlunio56-inventarioDividido em duas partes, O inventário das coisas ausentes é um romance curto, de narrativa ligeira e com leves toques de humor e tem como tema principal o encontro amoroso, o momento em que as pessoas descobrem o que é o amor.

A primeira parte tem um enredo mais embaralhado e simula um caderno de anotações de um escritor que está coletando ideias para um romance. Dessa forma, esse escritor é o narrador e sua personagem principal é Nina, uma moça que conhece no período de faculdade. As histórias contadas aqui são quase todas relacionadas a ela e a sua família. São histórias entre homens e mulheres, casamentos que não deram certo, maridos que foram embora, mulheres que casaram por obrigação, mas aqui e ali alguém descobrindo sua própria definição do que é amor: “então isto é o amor” é a frase que se repete.

A segunda parte, intitulada Ficção, seria a história propriamente dita, a narrativa criada pelo personagem escritor. É a história de um pai e de um filho, o encontro deles depois de 23 anos, bem como sobre a relação desse filho com Nina. Em vez de falar sobre o amor, aqui se fala muito mais sobre não saber o que é o amor, ou não saber manifestá-lo da melhor forma.

É uma daquelas ficções contemporâneas que reflete sobre o fazer literário e o faz bem, mas pessoalmente senti falta de mais desenvolvimento dos personagens, até mesmo da própria Nina, que deveria ser o personagem mais marcante. Sob o véu da narrativa fragmentada, tudo é mais sugestão do que fala e, no fim, parece que nada causou mudanças, não houve movimento, tudo ficou como já estava.

O escolhido foi você – Miranda July

interlunio55-escolhidoMiranda July é uma cineasta americana que, empacada com um roteiro em desenvolvimento, tenta encontrar outras formas de inspiração. Envolvida em perder um pouco de tempo na internet e folheando leituras aleatórias, ela acaba encontrando um ponto de partida ao ler um catálogo de anúncios de compra e venda, o Pennysaver. Um dos anúncios chama sua atenção: é alguém vendendo um casaco de couro por 10 dólares. Ela começa a se perguntar quem seria aquela pessoa, a história daquela jaqueta etc. então resolve ligar para ela e marcar um encontro, pagando-a pelo seu tempo. Ela descobre que o vendedor é Michael, um transexual idoso. A partir daí ela começa uma série de entrevistas com anunciantes do Pennysaver, tudo na missão de ajudá-la a compor sua história para o filme.

O escolhido foi você é um relato dessas entrevistas, ilustradas com as fotos dos participantes e dos objetos de venda. Mas mais do que isso, é sobre a própria Miranda July, sobre a escrita do roteiro do filme O futuro e sobre uma visão geral da vida profissional da autora. À medida que conta essas histórias, ela revela suas dificuldades com a escrita e outros momentos importantes de sua vida como escritora, como por exemplo, sua primeira peça, baseada na experiência de ter se correspondido, ainda adolescente, com um presidiário mais velho.

Miranda é muito autoconsciente de seus próprios privilégios e muito autocrítica, então ela mesma percebe o quanto essas entrevistas parecem tirá-la do seu ambiente mas ao mesmo tempo não vão fazê-la formar novas amizades, pois são pessoas com quem não tem nada em comum. E nem a intenção era essa, sua motivação é apenas coletar material humano para seu trabalho. O mais próximo que chega de uma real aproximação é o que tem com o último entrevistado (sem dúvida o entrevistado mais cativante), a ponto de ele acabar participando do seu filme.

Esse é um livro direto e honesto sobre encontros improváveis e o que se pode aprender com eles, mas infelizmente a autora não aprofundou suas conclusões ou reflexões sobre o que houve, e como a maioria das pessoas entrevistadas também não tinha muito a dizer, o leitor pode ficar com a sensação de que o que tem nas mãos é mais um álbum de figurinhas que um relato com conteúdo sobre composição artística.

As avós – Doris Lessing

interlunio54-avosAs avós é uma novela de história simples, mas que carrega uma grande problemática moral. Roz e Lil são melhores amigas desde a infância e são tão ligadas uma à outra que todos as tratam como irmãs gêmeas. Tudo na vida fazem juntas, inclusive casar e engravidar. Apesar disso são diferentes, Lil é atleta, de humor mais sério e contida e Roz é leviana, extrovertida e trabalha com teatro. Moram na mesma rua, à beira-mar, e são muito felizes, apesar de indiferentes ao seus maridos. Uma se torna viúva e a outra se separa, o que as deixa ainda mais felizes, cuidando de seus dois lindos filhos, Tom e Ian, que se tornam também melhores amigos, como as mães. Até que cada menino, no início da juventude, torna-se amante da amiga da mãe, de uma forma que não causa desconforto a nenhum deles, pelo contrário, os quatro parecem mais felizes do que nunca, com seus almoços e banhos de mar, cada menino instalado na casa de sua amante correspondente.

Até que a vida lá fora chama e esses meninos, já homens, são questionados por aparentemente não terem vida afetiva. É a partir daí que haverá uma primeira quebra no universo dessa singular família. Interessante perceber como fica clara a atração dos garotos pelas mulheres, mas o contrário não é descrito com tanta ênfase (a adaptação cinematográfica parece ter uma abordagem bem diferente). Comentários sobre a sexualidade são restritos aos pensamentos deles, elas parecem mais preocupadas com a afetividade como um todo.

A novela tem um tom quase de fantasia, no sentido de trazer tantas situações coincidentes, tantos personagens espelhos um do outro: além de Roz e Lil, Tom e Ian, há ainda Mary e Hannah, futuras esposas deles, e as filhas, Alice e Shirley. Que importa a verossimilhança? Doris Lessing quer apenas contar uma história que cause reflexão e discussão, e consegue. As duas mulheres – interessante reparar que a autora escolheu denominá-las de avós, no título, talvez para salientar suas idades – têm uma forte ligação amorosa, mas sem sexo. No entanto passam a resolver isso através do filho uma da outra, que são de certa forma também espelhos de suas mães. Da mesma forma os meninos se relacionam com elas, espelhos uma da outra, o que poderia ser interpretado como uma forma de serem amantes das próprias mães. Tecnicamente são apenas homens e mulheres se relacionando sem nenhum parentesco, mas por que não parece tão simples assim? Talvez porque o conceito de família esteja muito mais ligado ao crescer junto do que aos laços de sangue. Cada leitor terá seu julgamento, mas o que importa é que As avós tem personagens marcantes, com imagens bem construídas e uma estilo narrativo bem singular, mesmo com um texto tão curto.

Na praia – Ian McEwan

interlunio52-praiaNa Inglaterra de 1962, Edward e Florence são dois jovens apaixonados que acabaram de casar. Estão tendo uma refeição no hotel, à beira-mar e, ambos virgens, estão nervosos com o que irá se seguir. O que vai acontecer não será nada bom e porá em risco o relacionamento dos dois. À parte, na narrativa, haverá flashbacks de suas infâncias e adolescências e como chegaram a se conhecer. Também será contada a história dos pais: Edward de família pobre, com uma mãe deficiente mental, e Florence de família rica, com uma mãe fria e distante.

Uma das coisas que percebi logo de início nessa leitura foi como o autor parece não ter tido o mesmo cuidado com sua narrativa, comparando com os outros livros dele que já tive oportunidade de ler. A história principal, o momento do casal na praia, daria um um bom conto isolado, mas o contexto sócio-cultural do início dos anos 60 e a vida dos pais de Edward e Florence parecem muito mal costurados e não me convenceram como justificativa ou como um bom pano de fundo para o que ocorre com eles, pelo menos não da forma como ele conduziu.

A ladainha do fim do Imperialismo Britânico, a psicanálise de enciclopédia e a desculpa de que esses jovens eram contidos porque a libertação sexual ainda não havia acontecido é um refrão que repete-se o tempo inteiro enquanto, na praia, temos apenas duas pessoas ingênuas que casaram sem se conhecer direito. Um mérito dou para Ian McEwan: Na praia tem um final muito bonito, e um conto mais lapidado teria um resultado melhor que um romance mal-ajambrado.

Todos nós adorávamos caubóis – Carol Bensimon

interlunio42-caubóisEm um bom livro de estrada geralmente se espera bons personagens, um percurso interessante, muitos personagens secundários memoráveis, pequenas aventuras nas cidades de pouso e um certo crescimento dos viajantes, que a partir do afastamento de casa devem lidar com seus fantasmas interiores para tentar resolver internamente o que deixaram para trás.

Todos nós adorávamos caubóis, com o perdão da piada infame, fica no meio do caminho em relação a essas características, mas se salva como um bom livro apenas pela escrita leve e envolvente da autora, bem como pelas ótimas referências a quem foi jovem no final do século passado e começo deste século.

Cora é a narradora dessa viagem de carro pelo interior do Rio Grande do Sul, um sonho que compartilha com sua amiga-quem-dera-namorada Julia, com quem não falava há alguns anos. As duas vão parando em pousadas de cidadezinhas e conversando sobre seus problemas familiares e o passado que tiveram juntas, antes de Cora ir morar em Paris e Julia morar em Montreal. A autora foi muito corajosa ao construir uma protagonista tão arrogante e egocêntrica, com problemas tão comuns a uma adolescente, e não a uma jovem adulta. Julia é um contraponto, mas não tem tutano suficiente para causar um impacto maior.

O que mais incomoda no livro (e para alguns leitores isso será uma qualidade) certamente é a sensação de que essa viagem poderia ser para qualquer lugar, ou ainda, para lugar nenhum, que elas apenas queriam acertar os ponteiros da relação e passar um tempo juntas. As duas viajantes – especialmente Cora – não querem conhecer ninguém no caminho, elas se julgam muito superiores às pessoas que moram naquelas cidades, elas não têm nada a aprender com elas. Todos os personagens que encontram são descritos como pessoas esquisitas, cenários humanos para a viagem.

O foco apenas no romance das duas e a falta de cuidado com a história, muito superficial, me fez lamentar a oportunidade de Bensimon de construir um grande livro. Ainda assim não há como negar que a autora escreve bem e foi uma leitura agradável na maior parte do tempo, especialmente na primeira metade do livro, quando ainda há grandes expectativas e as histórias delas anteriores à viagem são bem mais interessantes. Talvez para conversar e namorar não fosse necessário ter gastado tanta gasolina.

Os detetives selvagens – Roberto Bolaño

interlunio35-detetivesrbJuan García Madero é um adolescente mexicano de 17 anos que acaba de entrar para um grupo de poetas do movimento realismo visceral. Envolvido com a literatura de maneira bastante formal e caricata, decorando termos técnicos da poesia, García Madero agora entra em contato com um mundo mais próximo da vida real, iniciando-se no sexo, na amizade e na escrita de forma a encaixar-se melhor neste grupo. O diário de García Madero sobre suas experiências constitui a primeira parte de Os detetives selvagens, obra publicada em 1998 pelo chileno Roberto Bolaño. Com o título de “Mexicanos perdidos no México”, essa primeira parte se passa no final do ano de 1975, e é através dela que conhecemos os personagens que se denominam real-visceralistas.

Em um primeiro nível temos os protagonistas: Arturo Belano e Ulises Lima. Líderes do movimento, são os típicos poetas vagabundos, marginais e aparentemente indiferentes a tudo. Além deles destacam-se Rafael Barrios, Jacinto Requena, Xóchitl García, Felipe Müller, as irmãs María e Angélica Font, os irmãos Rodriguez, Pele Divina, Laura Jáuregui e César Arriaga. Publicam seus poemas numa revista própria, chamada Lee Harvey Oswald e estão sempre pelas ruas da Cidade do México, em cafés, bares e boates, escrevendo e conversando ao lado de xícaras e mais xícaras de café com leite.

Pintado este retrato, que poderia ser atribuído – com um ou outro detalhe modificado – a muitos movimentos literários ao longo da história, o autor pausa a narrativa de García Madero para construir a segunda parte do livro (“Os detetives selvagens”), que abarca os anos de 1976 a 1996, e onde encontramos, como uma espécie de narrativa policial ou um documentário cinematográfico, duas situações investigativas: a procura de Belano e Lima pela poeta Cesárea Tinajero, que pertencia ao primeiro realismo visceral, nos anos 1920, e a procura de alguém desconhecido pelo perfil dos próprios Belano e Lima, através de relatos de pessoas próximas aos dois, num movimento que ilustra bem a tendência de uma geração sempre procurar pela geração anterior. O leitor é ele mesmo um detetive, tentando descobrir o que é e o que não é confiável diante de tantas pistas embaralhadas.

Os relatos formam um grande tecido sobre quem eram Belano e Lima, mas sobretudo eles contam histórias de vida mais ricas e encantadoras que as desses poetas. O romance entre dois homens, uma moça que tira fotos nua, a loucura lúcida de um homem que perdeu suas referências, uma mulher que se esconde por vários dias em um banheiro para não ser presa… Muitos relatos que transportam o leitor para longe da narrativa principal mas que ao mesmo tempo contestam a validade do próprio relato, já que cada personagem tem visões muito distintas de quem são Arturo Belano e Ulises Lima. Isso é mais evidente ainda diante da voz única que Roberto Bolaño dá a maioria destes personagens, através de um discurso indireto livre, com marcas de oralidade na medida para que o leitor acredite nessas histórias. A terceira parte do livro, “Os desertos de Sonora”, volta ao começo e retoma o diário de García Madero, o qual acompanha Belano e Lima em sua busca por Cesárea Tinajero por vários povoados mexicanos.

Ao contrário de O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, que propõe um quebra-cabeça hermético, Bolaño oferece um jogo mais simples de encaixar, abarcando leitores de vários tipos, desde o que está interessado em boas histórias até aquele que se empolga com referências obscuras ou com a diferente construção da narrativa. Através de alguns contrastes, o autor questiona o que é poesia, o que é ser poeta, o que é real e principalmente o que é real segundo o olhar de cada um. A poesia é algo que inicia com o ato de escrever ou é uma atitude perante a vida? Será que ser poeta tem mais a ver com roubar livros de sebos que propriamente publicar poemas? Bolaño sugere que a poesia é algo maior que a literatura e a juventude encontra nela um norte para a vida, afinal “não resta aos rapazes pobres outro remédio senão a vanguarda literária.”

Os cavalinhos de Platiplanto – José J. Veiga

interlunio23-cavalinhosA maioria dos autores do chamado realismo mágico costuma comentar que suas histórias nada têm de mágicas, que o que ocorre de estranho nelas ocorre no cotidiano das pessoas, que tudo depende do ponto de vista do que é considerado ou não verdade, e com José J. Veiga não era diferente. Fantástica ou apenas realista, não importa: a literatura mostra apenas o que é possível e esse possível quanto mais amplo, melhor. Quem pode dizer o que é ou não real?

Em Os cavalinhos de Platiplanto, publicado em 1959, o possível vem na forma de dois mundos. As histórias quase sempre têm dois planos, dois lugares distintos por onde os personagens transitam. Algumas vezes um dos planos representam o outro lado, o desconhecido, o sonho ou a imaginação. É o caso dos contos “Os cavalinhos de Platiplanto”, “A Invernada do Sossego”, “A espingarda do rei da Síria” e “Os do outro lado”. No primeiro um menino deseja ganhar um cavalo do seu avô mas depois que este fica doente a promessa fica sem ser cumprida da forma que ele esperava. No segundo também temos um menino e seu irmão, quando têm que lidar com a morte de seu cavalo de estimação. O terceiro mostra a fantasia de um homem que perdeu sua espingarda e consequentemente foi perdendo o respeito de todos à sua volta. E no quarto um rapaz entra em uma casa misteriosa, depois de seguir uma borboleta, e lá entra em contato com o mundo dos que já se foram.

Esse outro lado, portanto, pode ser um refúgio interno, um consolo pela perda. Mas em outras vezes um refúgio externo também, como em “A Ilha dos Gatos Pingados”, em que um grupo de meninos encontra uma ilha para brincar e ela se apresenta como um lugar de paz para um deles, que apanha constantemente do namorado da irmã. Este conto tem uma atmosfera bem semelhante às aventuras de Tom Sawyer e Huckleberry Finn, e Silviano Santiago, no prefácio para essa edição da Companhia das Letras, comenta sobre sua semelhança com o poema “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade e o romance Robinson Crusoé, de Daniel Defoe.

A infância, inclusive, toma de conta das histórias, e a criança, especialmente a criança menino, se encontra em situações em que deve se tornar adulta ou responsável por coisas sérias, mesmo quando ainda é muito cedo para isso. É o que ocorre em “Fronteira”, por exemplo, sobre um menino que acompanha pessoas pelos caminhos para que se sintam seguras e em “Tia Zi rezando”, em que os tios de um menino órfão escondem um segredo e farão de tudo para que ele nunca descubra. Da mesma forma em “Roupa no coradouro”, o conto mais emocionante da coletânea, um menino tem que lidar com a falta do pai, que está viajando, e cuidar da mãe, que acaba ficando muito doente.

Narrado sempre em primeira pessoa, os personagens do livro são pessoas frágeis, crianças ou homens sem poder, que se deparam com um outro superior e opressor. Agem segundo o desespero de não saber o que se passa em suas próprias vidas, de não terem controle até mesmo de suas escolhas, de não acharem espaço para a justiça, pois esta é reservada para poucos.

Não à toa essas histórias acontecem no campo, em fazendas ou cidades pequenas, lugares que remetem a uma vida mais primitiva. “A usina atrás do morro” é um dos contos que mais deixa clara essa condição de ignorância, impotência e opressão. Tem uma narrativa muito semelhante ao romance A hora dos ruminantes, em que moradores de uma pequena cidade se vêem cercados por pessoas de fora, que com um suposto progresso vão causando danos à população. Em um nível mais pessoal, o conto “Professor Pulquério” mostra um homem obcecado pela possibilidade de que haja um tesouro na cidade e acaba sendo marcado pela desconfiança e pelo desprezo. Já no conto “Entre irmãos” o estranhamento que vem do outro se revela entre dois irmãos que não se conhecem e que tentam conversar pela primeira vez. Mas é em “Era só brincadeira” que observamos o extremo da injustiça e da violência: em uma situação um tanto kafkiana, um homem se vê enredado por uma acusação que ele desconhece e a coisa é tão absurda que ele acredita que só possa ser uma brincadeira.

Mágica ou não, a literatura de José J. Veiga é antes de mais nada, crítica e reflexiva. Se as situações vividas pelos personagens parecem estranhas é porque a própria vida pode parecer ainda mais bizarra, sobretudo por conta da injustiça, seja em um nível social, seja nas relações pessoais. O autor nos mostra que o absurdo está mais presente no cotidiano do que nas fugas que inventamos para escapar dele.

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Escolhi e recebi este livro como cortesia da editora Companhia das Letras.

Um punhado de pó – Evelyn Waugh

interlunio12-handfulEm Um punhado de pó entramos em contato com o cotidiano de uma família inglesa nos anos 30, cuja casa, reformada de uma abadia gótica, representa tudo de mais precioso ao seu dono, Tony Last: tradição e valores da aristocracia britânica. Apesar das infinitas reformas e dos inúmeros criados tomarem todo o seu dinheiro, Tony não abre mão de suas lembranças e herança familiares. Quem não concorda com a situação é sua esposa Brenda, que depois de 8 anos vivendo no campo, numa casa que julga inútil, resolve se lançar a uma vida mais agitada em Londres, com direito a um amante e novos amigos.

Quando Tony finalmente descobre a traição e uma tragédia ocorre na família, um processo de divórcio é iniciado e aqui fica ainda mais claro o quão irônico é o autor, especialmente na fala de Brenda, que a todo instante disfarça seus erros colocando a culpa em Tony por tudo que lhe acontece. O egocentrismo de Brenda e de seu amante Beaver é tão absurdo que pode render boas risadas ao leitor.

É então que começa uma segunda parte do livro totalmente diferente da primeira. Tony faz uma viagem ao norte do Brasil acompanhando um explorador em busca de uma cidade perdida. O tom da história agora é outro, pois entre índios e uma selva desconhecida, o personagem precisa se preocupar apenas com a própria sobrevivência. Mas será que a distância fará com que esqueça Brenda? A situação-limite fará com que Tony demonstre alguma emoção, depois de tantos infortúnios aos quais sempre parece indiferente?

Esta parte do livro causa um certo desconforto, pois é uma grande quebra na coerência interna da narrativa. Apesar de estar passando por uma situação dolorosa, é difícil acreditar que Tony, um cavalheiro inglês acostumado a uma rotina em que o chá não pode deixar de ser servido na hora certa, tenha a disposição de adentrar a floresta amazônica em busca de uma ilusão. No entanto não há dúvida de que este momento é o mais envolvente da história e que dá aspectos originais a obra.

Com um final impactante, a despeito do resto da narrativa, que é geralmente arrastada e lenta, Um punhado de pó deixa uma impressão marcante no leitor, ainda que seus personagens não sejam nem de longe apaixonantes. Estão todos representando um papel voltado às convenções sociais, e a hipocrisia é a lei que rege esse mundo. Como se fosse um Fitzgerald inglês, Waugh faz uma crítica constante ao exagero dos prazeres, do dinheiro e das aparências: a mentira é valiosa, pois ela evita o grande monstro do constrangimento social.

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Esta leitura faz parte do Projeto 100 melhores romances segundo a revista Time.