Os passos perdidos – Alejo Carpentier

Os passos perdidos é uma história de fuga do cotidiano, das atividades repetidas sem sentido, de uma busca por movimentos que falem diretamente com aquilo que o ser humano é em sua essência. No entanto, não é essa a motivação de seu narrador num primeiro momento, esse musicólogo que recebe uma missão de ir à América Latina encontrar instrumentos musicais de tribos indígenas primitivas. Seu compromisso é chegar na selva tropical do que parece ser a Venezuela e trazer estas peças para um museu organológico, bem como comprovar sua teoria de que a música nasce da tentativa do homem de imitar o som dos animais.

Esse homem se encontra numa situação de fastio da vida cotidiana. Seu relacionamento com a esposa Ruth é distante, vê sua amante Mouche sempre com ironia e, embora seja bem sucedido, duvida de seu trabalho. Ao receber sua missão tampouco se anima e deixa se levar por Mouche, que vê na ocasião uma maneira de aproveitar férias em algum lugar exótico.

O narrador inicia então uma jornada lenta, cheia de reflexões a cada parada. As inúmeras referências a obras de arte, seja da música, da literatura ou das artes plásticas, que o ajudam a dar significado ao que vai vendo, vão dando lugar às experiências novas e vivas. Aos poucos ele vai entrando em contato com lembranças de infância, o idioma de sua mãe reaviva suas memórias e as situações vão lhe conduzindo a um embate interno, onde toda a sua vida é questionada.

Ele compara sua viagem à Odisseia, e como Ulisses, esbarra com personagens que conduzem sua jornada a algo extraordinário. Em cada ponto aparentemente vai se tornando outro homem e a maior responsável por sua vida nova é Rosario (que poderia ser comparada à figura de Nausicaa, na Odisseia), uma mulher que contém todos os povos, que representa a América Latina e por quem o musicólogo se apaixona.

Como todo livro de jornada, os episódios dividem a narrativa. Quando os insetos tomam conta das encanações de um hotel, por exemplo, vemos como Carpentier recorre ao insólito, beirando o fantástico. Mais pra frente, em contato direto com a floresta, o narrador vive situações assombrosas e se depara com um mundo em que o mimetismo da natureza deixa dúvidas sobre o que é real. Mouche inclusive comenta que estar naqueles locais era viver o maravilhoso, em vez de vê-lo nas obras de arte.

Desde o início do livro o narrador vai indicando o que está por vir: uma viagem não só pelo espaço, mas pelo tempo. A volta de um homem civilizado à natureza primitiva:

“Quando saíssemos da bruma opalescente que a aurora esverdeava, teria início, para mim, um tipo de Descobrimento.”

Ele volta não apenas à sua infância, mas à infância da História mesma e ali percebe uma outra forma de vida, que elimina o sentido de sua vida anterior.

“Vemo-nos como intrusos, prestes a serem expulsos de um domínio proibido. O que se abre diante de nossos olhos é o mundo anterior ao homem.”

Viver uma nova vida significa ser uma nova pessoa? Sua teoria de como nasce a música é confirmada? Como Ulisses, ele voltará para Penélope? Seu destino resume a condição de alguém que não encontra seu lugar no mundo, mas que está disposto a lutar por ele.

“Compreendi que a obra máxima proposta pelo ser humano é a de forjar um destino para si mesmo. Porque aqui, na multidão que me rodeia e corre, ao mesmo tempo desaforada e submetida, vejo muitos rostos e poucos destinos. E acontece que, por trás desses rostos, qualquer desejo profundo, qualquer rebeldia, qualquer impulso, é sempre impedido pelo medo.”

Dom Quixote – Miguel de Cervantes

03_quixote_interlúnioUma surpresa que tive ao iniciar a leitura de Dom Quixote foi que se trata na verdade de 2 livros, de uma série não planejada pelo espanhol Miguel de Cervantes. O primeiro foi publicado em 1605, com o título de O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha e o segundo, apenas em 1615, chamando-se Segunda parte do engenhoso cavaleiro Dom Quixote de la Mancha. São livros um pouco diferentes no estilo, mas ambos com um caráter  de experimentação de um novo gênero, um embrião do que ia ser chamado mais tarde de romance.

No primeiro o autor agiu com mais liberdade. É possível encontrar erros de continuidade (não se sabe se propositais), a escrita é solta e cheia de humor, os personagens e as situações referenciam as novelas de cavalaria o tempo todo e histórias paralelas são contadas ou presenciadas ao longo de todo o livro, dando um clima de histórias dentro de histórias. Neste os personagens vivem praticamente na estrada, buscando as aventuras conforme vão cavalgando, e as pessoas que vão encontrando no meio do caminho tomam mais tempo de narrativa que os próprios protagonistas.

Já no segundo Cervantes parece ter se preocupado mais com a forma, a estrutura narrativa é mais bem amarrada e o humor continua, talvez um pouco menos sutil. Aqui os heróis têm mais destaque, especialmente Sancho Pança, e ficam em grande parte sob o teto de alguém hospitaleiro, longe dos perigos das estradas, mas mais perto de troças maldosas. As aventuras, em vez de surgirem do acaso, geralmente aparecem como farsa.

02_quixote_interlúnioIsso acontece porque o segundo livro é uma espécie de Dom Quixote do primeiro, isto é, assim como o primeiro livro faz referência às novelas de cavalaria, o segundo livro faz referência ao primeiro livro de Dom Quixote. Numa intrincada rede metaficcional, os personagens do segundo são leitores do primeiro e quando se deparam com as figuras de Dom Quixote e Sancho Pança, muitos querem se aproveitar deles para que vivam as mais disparatadas situações, o que deixa grande parte do livro como um palco onde os heróis são meras marionetes.

Além disso, o narrador dos livros é um caso à parte, pois ele conta a história através de uma tradução da obra de um certo autor chamado Benengeli, e em alguns momentos têm-se até a opinião do tradutor adentrando a narrativa, causando a sensação de que se trata de uma história que poderia ter várias versões, mas que esta foi a que calhou de estar ali. Por toda a obra temos referência ao próprio ato de narrar a história, nos lembrando sempre seu caráter ficcional.

Dom Quixote é uma pessoa dos livros. Mais do que isso, ele quer, como aquela imagem que temos dos desenhos animados infantis, entrar no livros e se tornar personagem deles. Para isso ele decide viver o que deseja. Como uma criança que vê o que quer ver e brinca com a imaginação que possui, o fidalgo torna-se cavaleiro andante. Com a melhor das boas intenções Quixote quer retomar valores perdidos, grandes significados que não existem mais, e obviamente é tido como louco. Ainda assim dá para vê-lo também como aquele que inventa a si mesmo, que busca ser o que quer ser, mesmo que tudo não passe de ficção.

Sancho Pança, por outro lado, tem os pés bem calcados no chão e sua pobreza lhe suscita a busca por comida, conforto e dinheiro. Ora interesseiro, ora amigo, Sancho é sempre um alívio à melancolia de Quixote, com seus inúmeros provérbios e sabedoria popular que garantem os risos do leitor.

Dom Quixote é uma obra sobre inventar histórias, sobre encenação da realidade, sobre um leitor que quer viver o que seus personagens queridos viveram e com isso tornar-se autor de si mesmo enquanto personagem. Quixote é como se fosse um escritor que, em vez de escrever um livro, vive-o constantemente e que nos faz pensar no que nossa realidade tem de autêntico e de farsa, já que grande parte da vida pode ser vivida seguindo ilusões que tomamos como verdade.

Como o soldado conserta o gramofone – Saša Stanišić

01_gramofone_interlúnioEm 1992, após a dissolução da Iugoslávia socialista, a Guerra da Bósnia ocasionou um terrível genocídio. Militares sérvios tomaram cidades da Bósnia e cometeram estupros e assassinatos, causando milhares de vítimas. É nesse contexto que os personagens de Como o soldado conserta o gramofone estão inseridos, na cidade de Visegrad, às margens do rio Drina.

“Eu venho de um país que não existe mais lá de onde eu vivi.”

Aleksandar é o seu narrador, um menino com mais ou menos 14 anos, imaginativo e sensível, com grande capacidade criadora, herdada do seu querido avô Slavko, que lhe faz um chapéu de mágico e uma varinha de condão para que ele acredite que há magia na vida.

“A graça mais valiosa é a inventividade, a maior riqueza é a fantasia.”

No entanto, já de início Aleksandar terá que enfrentar sua primeira grande prova: os artefatos que ganha do avô se perdem justamente quando ele morre e enorme é o peso da responsabilidade de resolver o que é impossível de resolver se não há magia. Ele resolve suas tristezas com seu olhar enviesado de poesia, uma poesia que nasce da ingenuidade infantil e da nostalgia sensorial: cheiros, cores, sabores e sons que vão ficando para trás por causa da guerra, mas que continuam ecoando através das palavras:

“Depois que eu tiver concedido a vovô Slavko a capacidade de voltar a viver, meu próximo golpe de mestre será dar a todo mundo a capacidade de reter ruídos. Todo mundo conseguirá colocar o vento nas folhas da cerejeira e o rumor do trovão e os latidos noturnos dos cães no verão num álbum de sons. …e assim mostraremos com orgulho nossa vida feita de sons, assim como mostramos as fotos das férias no mar Adriático. Pequenos ruídos poderão ser carregados dentro da mão fechada. Eu colocaria o riso dos dias felizes por cima da preocupação no rosto de minha mãe, por exemplo.”

A prosa de Stanišić, que se confunde com a prosa de Aleksandar, que além de narrador também tem sua vez como autor de um livro interno, é pausada e sugere tanto quanto diz. Expressa-se devagar e deixa o leitor meditar, sem que seja possível perder qualquer detalhe. Ela brinca com as próprias regras do escrever e chama atenção para o que realmente importa no texto. Sem falar de alguns capítulos que se desviam em outros gêneros, como cartas e registros telefônicos. À medida que o livro se aproxima do final, no entanto, esse estilo se modifica e infelizmente o livro perde um pouco sua poesia para um tom mais documental, mas não há dúvidas de que a grande qualidade do livro é sua linguagem.

É um romance nostálgico e melancólico, que leva o leitor para dentro da tristeza da guerra, ainda que de forma delicada – e talvez por isso mesmo dolorosa, mas que também nos leva à infância, a um jeito de olhar que se perdeu. Mesmo depois de ir embora com os pais para a Alemanha, a vida de Aleksandar está atada ao passado, aos familiares, às lembranças de ameixas e carne moída, aos amigos que ficaram enfrentando a guerra e o que veio depois dela, à memória de um momento com uma menina chamada Asija, da qual não consegue notícias, às pescarias no rio Drina e a todos os sons que ecoam desse velho gramofone, os sons de explosões e de silêncio.

Léxico Familiar – Natalia Ginzburg

interlunio61-lexicoExistem livros que são capazes de atingir uma camada mais profunda do leitor: histórias que falam com nossas histórias, pessoas ou personagens que revelam o que não conseguimos expressar. Léxico Familiar é um destes livros que nos tomam pela mão e nos levam a rever fragmentos de nossas vidas, como se fossem um dos espectros que surgem para Scrooge no Natal.

Com uma linguagem direta mas ao mesmo tempo afetuosa, a autora italiana Natalia Ginzburg tece um bordado de memórias – para usar uma metáfora do posfácio da edição – relativas à sua vida familiar, da infância à vida adulta. O foco está longe de ser ela mesma: não há quase menção sobre suas descobertas de menina, sobre o seu casamento com Leone Ginzburg ou sobre ser mãe de três filhos. A família aqui é a família que temos enquanto filhos, a que convivemos com as pessoas que não escolhemos: os pais, os irmãos, os parentes e amigos dos pais. E ela constrói esse bordado tomando como fio as frases, anedotas, expressões usadas pela família que vão se repetindo ao longo da narrativa, como não poderia ser diferente em qualquer convivência familiar.

As frases familiares e as piadas internas nos causam uma sensação de conforto, como se fizéssemos parte dessa família ou comparássemos com a nossa. Expressões como “surge um novo astro”, “as sobras de Virginia” e “não reconheço mais a minha Alemanha” causam-nos gargalhadas, pois nos sentimos incluídos nessa história e nos lembramos do que um avô ou uma tia costumava repetir em nossa infância e que virou um bordão em várias situações.

Ainda que ela mostre o pai como um homem duro e intransigente, acabamos por rir muito com esta figura, com sua falta de paciência e seus despertares durante a noite, preocupado com que rumo os filhos iam tomar. Sua mãe é retratada como uma figura um tanto passiva mas de um espírito livre, feliz e tranquilo, com uma sabedoria poética diante da vida. A família Levi, que conta ainda com os irmãos Gino, Mario, Alberto e Paola, vive com muito bom humor, mas ao mesmo tempo com a grande sombra do fascismo na Itália e da Segunda Guerra, que levam muitos amigos e familiares ao exílio e à morte.

Cada família constrói o seu próprio léxico familiar, mas não há dúvida de que o léxico da família de Natalia Ginzburg é especial e cheio de referências artísticas interessantes, nos envolvendo naquele afeto misterioso que as famílias têm, que se apresentam até mesmo nas brigas e discussões acaloradas. Uma leitura deliciosa, com todos os elementos que uma vida guarda: sonhos, perdas, melancolia, alegria, sonhos e desilusão, com humor e beleza, e um final que nos leva a querer voltar ao começo.

Joe Speedboat – Tommy Wieringa

interlunio60-speedboatNa pequena Lomark, uma cidade fictícia na Holanda, vive Fransje Herman, um garoto de 15 anos que, depois de um acidente que o deixou em coma por quase um ano, perde a fala e a maior parte dos movimentos. Em sua cadeira de rodas, Fransje leva tudo com um ótimo humor irônico, sem lugar para muita auto-piedade. Sua vida é cercada por máquinas: a família trabalha com desmanche de sucata e seu grande amigo é Joe Speedboat, um garoto genial que é fascinado em mexer em carros e construir bombas.

Juntamente com os amigos de escola Christof e Engel, Joe forma um grupo para construir um avião e aos poucos Fransje consegue fazer parte do projeto, ainda que como observador. Ele se aproveita de sua condição passiva para ser o cronista da vida não só desses meninos, mas da cidade inteira, e sobretudo de Joe. Ele quer deixar registrado tudo que vivencia em Lomark e preenche inúmeros cadernos com sua observações.

“Não participo de nada. Impossível. O que procuro fazer é me movimentar o tempo todo, uma hora estou aqui e outra acolá: o bandido de um só braço com olhos biônicos. Nada lhe escapa; seus olhos tudo veem. Engole o mundo como uma anaconda devora um porquinho. If you can’t join them, eat them, o que você acha? Sobe morro, desce morro, contra vento e contra chuva, espuma saindo da boca. De guarda no seu carro de guerra, um poncho para se proteger da chuva em dias de tempestade, um gorro na cabeça quando a tormenta investe contra as persianas ou uma camiseta do Havaí no sol quente. Não precisa ter medo. Os Olhos tudo veem.”

Com o tempo, o humor de Fransje vai se tornando um pouco mais melancólico, pois percebe que suas limitações afetarão sua relação com as mulheres, especialmente com PJ, a linda garota por quem é apaixonado. Afetarão também sua vida profissional, pois entende que, ao terminar o colégio, não vai poder ir muito longe na vida. Para que ele possa ter uma renda, seus pais instalam no quintal de casa uma pequena fábrica de briquetes de papel e Fransje então aceita que isso provavelmente será seu trabalho pelo resto da vida.

É aí que entra Joe, sempre chacoalhando a monotonia de Fransje. Quando percebe que seu braço direito, a única parte de Fransje que se movimenta, torna-se cada vez mais forte com a atividade de prensar os briquetes, sugere que eles façam uma sociedade em campeonatos de queda de braço. O livro se divide assim entre esses dois momentos, Pluma e Espada, o cronista e o lutador, em uma referência ao caminho do samurai, descrito por Miyamoto Musashi. Joe Speedboat é portanto, a via de escape para um mundo longe de Lomark, não só no sentido físico, mas também no sentido espiritual: não é à toa que o avião acabe virando uma simbologia do caráter de Joe. Fransje o vê não apenas como um amigo, mas como um verdadeiro ídolo, pois ele sempre comemora as vitórias de Joe como um golpe contra a própria cidade e a mediocridade.

“Mais que um cara excepcional, ele era uma força libertadora. Estar perto dele dava comichões – a energia se transformava em algo palpável em suas mãos; do nada, ele tirava das mangas bombas, motocicletas de corrida e aviões, e fazia com eles malabarismos como um mágico inconsequente.”

Wieringa teve muito sucesso ao fazer a voz de Fransje. Ainda que o personagem não fale, estamos o tempo todo acompanhando o que ele pensa e esses pensamentos têm uma voz única. Infelizmente ele não consegue o mesmo com Speedboat. Seus discursos sobre máquinas, entropia e outras categorias da física soam às vezes artificiais, revelando um pouco das possíveis pesquisas do autor, e deixando de lado a naturalidade com que um jovem, por mais brilhante que seja, falaria com outros jovens.

Outro passo em falso do autor é quando resolve desenvolver a personagem PJ apenas na parte final do livro e de uma forma nada confiável: através de um livro escrito por outro personagem que não participa diretamente da história. A partir daí a personagem é julgada até o fim do livro por um slogan machista e desnecessário. Em um livro que fala tanto sobre amizade e companheirismo, teria sido mais elegante ter mostrado PJ apenas como um ser humano, deixando o julgamento para o leitor.

Com uma escrita ágil e irônica, o autor trabalha diversos temas envolventes, como a adolescência como o momento ideal para se envolver em projetos que exigem imaginação e coragem, passando por uma leve crítica ao consumismo desenfreado, simbolizado pela quantidade absurda de sucata presente em vários momentos do livro. Mas é quando retrata a pequena cidade, com pessoas com sonhos que não lhe cabem, que o livro brilha. É um história sobre movimento, sobre as tentativas de sair do lugar, sob todas as formas, e ao mesmo tempo é sobre a constatação que mesmo em pequenos lugares você pode vivenciar momentos grandiosos, contanto que esteja com as pessoas certas.

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Escolhi e recebi este livro como cortesia da editora parceira Rádio Londres.

Frankenstein ou O Prometeu moderno – Mary Shelley

interlunio59-frankensteinPublicado em 1818, Frankenstein não apenas se tornou uma das maiores histórias de horror de todos os tempos, como também é considerado o primeiro romance de ficção-científica. Além disso, a história de sua concepção é tão famosa quanto sua narrativa, talvez até mais: Mary Shelley imaginou a história depois de um pesadelo que teve, fruto das discussões com seu marido Percy Shelley, o poeta Lord Byron e outros amigos, sobre a possibilidade do homem de criar vida. Havia entre eles um desafio de cada um escrever uma história de terror e o pesadelo foi então a chave para a jovem escritora, que tinha apenas 19 anos.

A estrutura de Frankenstein é inusitada, com uma narrativa dentro da outra e com várias mudanças de ponto de vista. A primeira camada, que inicia e termina o livro, é constituída por cartas de um cientista inglês chamado Robert Walton para sua irmã Margaret. Walton está viajando pelos mares gelados do norte do planeta em busca de descobertas científicas que o glorifiquem. Um dia ele avista, ao longe, um homem de grande estatura em um trenó puxado por cães. Logo em seguida ele salva outro homem, em outro trenó, que sofrera um acidente. É Victor Frankenstein, um suíço com enorme magnetismo, porém doente e devastado pela dor. Quando Victor percebe que Walton é uma versão do que ele foi, resolve contar-lhe sua história, com a esperança que ele perca a atitude arrogante que ele tinha de colocar a Ciência acima de todas as coisas.

Começa assim a narrativa principal, contada por Frankenstein. Ele inicia relatando como sua infância foi feliz, com pais amorosos e a companhia de seu grande amigo Henry e de sua amada Elizabeth, uma órfã adotada por sua família. Desde cedo, Victor se mostra um entusiasta exagerado da Ciência e seu principal objetivo é realizar grandes feitos à humanidade. E é o objetivo de gerar vida que será tanto sua grande obra quanto sua ruína. E ele consegue isso depois de alguns anos de estudo na Alemanha, longe da família.

A partir de um processo que não é mostrado em detalhes – fica subentendido que Frankenstein usa material humano, mas não explica de que forma –, ele cria um ser e lhe dá a vida. O problema é que apenas quando o ser se move ele percebe o quanto a criatura que ele mesmo fez é grotesca na aparência. Semelhante ao homem, mas de uma outra espécie, muito mais ágil e forte, o monstro é uma criatura gigantesca e de feições desagradáveis ao olho humano, com deformidades, longos cabelos negros e pele amarela. Sem conseguir suportar sua criação ele foge e a criatura some.

Por um tempo Victor Frankenstein vive assombrado com o que fez, mal sabendo que o monstro será responsável por uma série de tragédias em sua vida, sendo a primeira a morte de seu irmãozinho William. Agora ele irá pagar por ser um pai que rejeitou o próprio filho e não soube lhe dar amparo, direcionamento ou compaixão. Quando eles finalmente se encontram, inicia-se uma nova narrativa, dessa vez sob o ponto de vista do monstro. É aqui que se dá um momento grandioso do livro, a conversa franca entre criatura e criador, a tragédia de um e de outro, especialmente do monstro, que à semelhança de Adão, quer entender porque recebeu o sopro de vida e depois foi abandonado. Mas ao contrário deste, e até mesmo de Lúcifer, como ele próprio exemplifica, não chegou a receber amor de seu criador, não pôde contar com a ajuda de ninguém e por ser único no mundo sua desgraça maior é a solidão.

“O anjo caído se transforma num demônio maligno. No entanto, até esse inimigo de Deus e dos homens teve amigos e cúmplices em sua desolação; eu estou sozinho.”

Por conta da clássica associação de que a feiúra é sinal de maldade, ele sabe que nunca vai poder se relacionar com a humanidade, pois todas suas tentativas foram um fracasso. E é aí que ele, desesperadamente, pede a Victor que lhe fabrique uma companhia da mesma espécie. Nesse momento não há como não sentir compaixão pelo monstro. Ele conta tudo por que passou, o descobrimento das primeiras coisas, do fogo, da linguagem, da consciência dos sentimentos e sensações. Inclusive aqui há mais uma narrativa interna sobre uma família francesa desgraçada pela pobreza e que serve como fonte de educação a ele, ainda que apenas como observador. Ele pede para ser amado, aceito. Ele argumenta que o desprezo de todos o fez revoltado e malvado. Mas Victor o perdoará por todos os crimes que já cometeu?

É aqui que se desenrola o grande dilema do romance pois Victor é responsável por tudo que sua criatura faz e não só pagará por rejeitar o “filho”, como também por ter ousado brincar com um ato que é divino. Esse Prometeu Moderno, que faz o homem do barro ou lhe dá o fogo, desafiando os deuses, será punido até o último momento com o fardo pesado da culpa por todas as mortes causadas pelo monstro. Essa responsabilidade de Victor não seria uma manifestação do seu próprio monstro interior?

O estilo de Shelley é dramático, nitidamente manifestado pelo desespero de Frankenstein, um homem que sente tudo de maneira muito profunda e que é marcado por uma tragédia atrás da outra. Há muitos elementos góticos, o medo e o suspense em que vive o protagonista, os belíssimos cenários naturais da Europa, castelos em ruínas e à beira de abismos, e as muitas contemplações dessas paisagens, geralmente nas viagens mostradas, que são sempre uma espécie de intermezzo entre as ações.

Ao contrário das adaptações cinematográficas, com suas descargas de eletricidade vinda de raios, não há uma explicação para o princípio da vida descoberto por Frankenstein. Mas todas as narrativas inspiradas nessa obra mostram o perigo da ciência sem ética, as consequências de fazer algo apenas pelo poder de fazê-lo. Roubar o fogo para dá-lo aos homens é tarefa fácil, difícil é perceber que o fogo que aquece também destrói e que manipular a natureza exige uma grande coragem e discernimento, qualidades que o jovem Victor Frankenstein estava longe de possuir.

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Essa foi uma leitura para o Fórum Entre Pontos e Vírgulas.

Aos 7 e aos 40 – João Anzanello Carrascoza

interlunio58-7e40A idade dos 7 aos 9 anos sempre me pareceu uma época da vida que é definitiva. Parece um tempo em que tudo se estabelece, as escolhas já foram feitas, os valores estão formatados e o aprendizado que se seguirá dificilmente nos atingirá no cerne, apenas naquilo que temos de mais maleável.

Em Aos 7 e aos 40 temos um vislumbre do quanto esse pedaço de infância pode nos deixar marcados e o quanto essa saudade do que foi pode ser um bálsamo para as feridas da vida adulta.

Dividido em dois tempos narrativos, este pequeno romance de Carrascoza fala da vida de um menino aos 7 anos – com um narrador em primeira pessoa – e o mesmo com sua idade atual, seus 40 anos – com um discurso em terceira pessoa, e em versos. O menino descreve suas brincadeiras, seus amigos de rua e escola, suas partidas de futebol com o irmão mais velho, o treinamento de salto em altura, os conselhos certeiros da mãe, as conversas no carro com o pai e o primeiro amor, sua prima Teresa. Esse narrador criança lembra muito os de José J. Veiga, meninos com muita doçura, encanto pela vida, inocência e vivacidade. Já o homem é descrito por suas perdas, a separação da esposa, a saudade do filho que só vê aos finais de semana, a lembrança de quando era apenas um menino e podia se sentir feliz.

Os capítulos são divididos em categorias contrárias, demarcando bem a diferença entre os dois períodos de vida: Depressa e Devagar, Leitura e Escritura, Nunca mais e Para sempre, Dia e Noite, Silêncio e Som, Fim e Recomeço. Enquanto o menino é “fiel ao seu instante”, existindo para o dia, isto é, cada dia serve para ser aproveitado, o homem vive seus anos, o que passou e o que ainda está por vir. Enquanto o menino é transparência, o homem é entrelinha. E nesse encontro de lembrança e realidade, o homem quer voltar ao começo para ver se consegue resgatar o que sentia, seja a sensação de ver pela primeira vez os olhos e o sorriso de Teresa, seja a emoção de ir com um amigo pegar um passarinho na arapuca.

“Às vezes, é preciso mesmo olhar pra trás se queremos ir em frente.”

Solanin – Inio Asano

interlunio57-solaninMeiko e Taneda são um jovem casal de namorados vivendo juntos na cidade de Tóquio. Eles terminaram a faculdade e trabalham, mas não estão satisfeitos com o rumo que suas vidas tomaram. Meiko decide pedir demissão e como ela praticamente sustenta a casa, Taneda fica um pouco desesperado. É que ela acha que a vida pode ser mais do que assumir o chamado cotidiano de pessoas adultas. “Será que eu não deveria estar fazendo outra coisa?” Eis a pergunta tão comum às pessoas de 20 e poucos anos.

A decisão de Meiko vai transformar mais a vida das pessoas que a rodeiam que a dela mesma, pelo menos em um primeiro momento. Seus amigos também vão se questionar e Taneda é o mais atingido. Agora ele pensa que deve levar a sua banda de rock de final de semana mais a sério. E então tudo começa, dá-se a largada pela busca dos sonhos. O problema é que após alguns dias a realidade cai na cabeça de todos e Meiko percebe que não vai poder viver a vida inteira com o que ela tem na poupança. E quando parece que tudo vai ficar bem, que a solução vai aparecer de alguma forma, uma tragédia acontece e todos na turma ficam sem chão.

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Solanin é o nome de uma canção escrita por Taneda e é a partir dessa música que Meiko vai tentar encontrar seu caminho para uma nova vida, uma vida com a tão esperada liberdade. É um mangá com uma bela história, especialmente para aqueles que não encontraram seu talento no mundo. Solanin é para aqueles que valorizam a amizade, a lealdade, e para aqueles que sabem que estar perdido no mundo é menos duro quando há companhia.

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O inventário das coisas ausentes – Carola Saavedra

interlunio56-inventarioDividido em duas partes, O inventário das coisas ausentes é um romance curto, de narrativa ligeira e com leves toques de humor e tem como tema principal o encontro amoroso, o momento em que as pessoas descobrem o que é o amor.

A primeira parte tem um enredo mais embaralhado e simula um caderno de anotações de um escritor que está coletando ideias para um romance. Dessa forma, esse escritor é o narrador e sua personagem principal é Nina, uma moça que conhece no período de faculdade. As histórias contadas aqui são quase todas relacionadas a ela e a sua família. São histórias entre homens e mulheres, casamentos que não deram certo, maridos que foram embora, mulheres que casaram por obrigação, mas aqui e ali alguém descobrindo sua própria definição do que é amor: “então isto é o amor” é a frase que se repete.

A segunda parte, intitulada Ficção, seria a história propriamente dita, a narrativa criada pelo personagem escritor. É a história de um pai e de um filho, o encontro deles depois de 23 anos, bem como sobre a relação desse filho com Nina. Em vez de falar sobre o amor, aqui se fala muito mais sobre não saber o que é o amor, ou não saber manifestá-lo da melhor forma.

É uma daquelas ficções contemporâneas que reflete sobre o fazer literário e o faz bem, mas pessoalmente senti falta de mais desenvolvimento dos personagens, até mesmo da própria Nina, que deveria ser o personagem mais marcante. Sob o véu da narrativa fragmentada, tudo é mais sugestão do que fala e, no fim, parece que nada causou mudanças, não houve movimento, tudo ficou como já estava.