Este texto participa do Fórum Literário Entre Pontos e Vírgulas, que tem como leitura do mês o livro Laranja Mecânica, de Anthony Burgess. Como é voltado para pessoas que leram o livro, contém revelações sobre o enredo.
Todos nós somos seres orgânicos que agem através de escolhas morais, mas nos tornamos máquinas quando somos condicionados, nos tornamos algo como uma laranja mecânica. Essa é a grande proposição do livro de Burgess, que defende o livre-arbítrio como uma condição essencial do ser humano.
E ele faz isso nos contando a história de Alex, um adolescente viciado em violência e música clássica, odioso e carismático ao mesmo tempo, que com sua gangue de druguis sai à noite para praticar todos os tipos de violência extrema, mas não sem antes tomar seu leite batizado com drogas. O grupo tem uma linguagem própria, o nadsat, e durante a leitura vamos nos familiarizando com esse vocabulário – muito embora às vezes o glossário no final do livro ajude em alguns termos.
Na primeira parte da obra somos testemunhas de alguns terríveis atos do grupo, até o ponto em que Alex é preso por assassinar uma senhora. É só então na segunda parte que começa a primeira fase de punição: sua vida na prisão. Sua amizade com o capelão do local traz valiosas discussões sobre o livre-arbítrio ao conversarem sobre a possibilidade de Alex ser usado numa técnica de reabilitação, a técnica Ludovico, que o impediria de praticar o mal novamente e garantiria sua liberdade. O capelão argumenta que o processo o impediria de tomar decisões morais e que, portanto o deixaria sem alma:
“A questão é se uma técnica dessas pode realmente tornar um homem bom. A bondade vem de dentro, 6655321. Bondade é algo que se escolhe. Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser um homem.”
“Pode não ser bom ser bom, pequeno 6655321. Ser bom pode ser horrível. E quando digo isso a você, percebo o quão auto-contraditório isso soa. Eu sei que perderei muitas noites de sono por causa disso. O que Deus quer? Será que Deus quer bondade ou a escolha da bondade? Será que um homem que escolhe o mal é talvez melhor do que um homem que teve o bem imposto a si?”
Segundo ele, e é essa a defesa do autor, o mal existe em todos nós. O que nos define como uma pessoa boa ou má é a escolha ética que fazemos: escolhemos não praticar o mal, mas isso não quer dizer que somos bons. Ser impedido de fazer o mal também impede Alex de fazer o bem, pois anula o livre-arbítrio. O bem tem que ser uma escolha, e não um condicionamento que deixa o indivíduo programado para não cometer crimes:
“Ele será seu verdadeiro cristão – krikava o Dr. Brodsky –, pronto para dar a outra face, pronto para ser crucificado ao invés de crucificar, doente até a alma só de pensar em sequer matar uma mosca.”
A técnica usada em Alex, portanto, não teria a intenção primeira de torná-lo um sujeito bom, mas tão somente um sujeito controlado. Seria apenas uma manobra política, uma punição mais barata e eficiente que sustentá-lo na prisão, garantindo segurança à sociedade. Alex aceita participar da experiência porque no fundo ele não acredita que vai deixar de ser quem é e também porque está mais interessado em sua liberdade, mas no momento em que percebe que todas as coisas que lhe davam prazer não podem mais se realizar, descobre que se tornou um mecanismo, que perdeu sua humanidade:
“Será que eu serei apenas uma laranja mecânica?”
A última parte do livro tem quase um tom de fábula porque Alex se reencontra com todo o seu passado e sofre sua segunda fase de punição, vinda de várias pessoas a quem fez mal, sem poder se defender. Nesse ponto fica claro que o autor defende que nenhuma maldade que Alex tenha feito pode ser pior do que a que ele sofre, já que ele teria sido castrado naquilo que o faz humano, que é a sua escolha, seu livre-arbítrio.
No final, também por motivos políticos, Alex volta a ser o que era e é claro que volta a praticar crimes, mas em determinado momento se vê cansado da vida que leva e passa a desejar uma vida mais adulta. Nesse ponto percebemos que Burgess acredita que a falta de maturidade de Alex (ou dos jovens, em geral) é que o levaria a cometer todos aqueles atos violentos e que chegando a determinado ponto de sua vida, esses atos passariam a não fazer mais sentido.
A única coisa que me incomodou nesse final foi que em nenhum momento anterior na história do personagem ele faz qualquer reflexão que ponha em questão seus atos: para ele a violência dá prazer e ele a pratica porque deseja. Talvez por isso o último capítulo tenha um tom muito diferente do resto do livro: a redenção de Alex através da música seria, apesar de mais óbvia, mais convincente para mim, afinal não são apenas adolescentes que praticam crimes. No entanto, comparando com a versão americana do livro e com o filme de Kubrick, que ignoram o último capítulo, é melhor que haja algum tipo de redenção que nenhuma, do contrário a proposta do autor de demonstrar que não somos bons nem maus, que nossas escolhas flutuam, não se aplicaria a Alex, e ele se tornaria a própria encarnação da maldade.
Isso não tira o mérito da adaptação cinematográfica que, com exceção do final, foi extremamente fiel ao livro e encontrou soluções geniais para deixar a história ainda mais simbólica e angustiante. Apesar de ter vida própria enquanto filme, não deveria dispensar este incrível livro em que foi baseado.