Na pequena Lomark, uma cidade fictícia na Holanda, vive Fransje Herman, um garoto de 15 anos que, depois de um acidente que o deixou em coma por quase um ano, perde a fala e a maior parte dos movimentos. Em sua cadeira de rodas, Fransje leva tudo com um ótimo humor irônico, sem lugar para muita auto-piedade. Sua vida é cercada por máquinas: a família trabalha com desmanche de sucata e seu grande amigo é Joe Speedboat, um garoto genial que é fascinado em mexer em carros e construir bombas.
Juntamente com os amigos de escola Christof e Engel, Joe forma um grupo para construir um avião e aos poucos Fransje consegue fazer parte do projeto, ainda que como observador. Ele se aproveita de sua condição passiva para ser o cronista da vida não só desses meninos, mas da cidade inteira, e sobretudo de Joe. Ele quer deixar registrado tudo que vivencia em Lomark e preenche inúmeros cadernos com sua observações.
“Não participo de nada. Impossível. O que procuro fazer é me movimentar o tempo todo, uma hora estou aqui e outra acolá: o bandido de um só braço com olhos biônicos. Nada lhe escapa; seus olhos tudo veem. Engole o mundo como uma anaconda devora um porquinho. If you can’t join them, eat them, o que você acha? Sobe morro, desce morro, contra vento e contra chuva, espuma saindo da boca. De guarda no seu carro de guerra, um poncho para se proteger da chuva em dias de tempestade, um gorro na cabeça quando a tormenta investe contra as persianas ou uma camiseta do Havaí no sol quente. Não precisa ter medo. Os Olhos tudo veem.”
Com o tempo, o humor de Fransje vai se tornando um pouco mais melancólico, pois percebe que suas limitações afetarão sua relação com as mulheres, especialmente com PJ, a linda garota por quem é apaixonado. Afetarão também sua vida profissional, pois entende que, ao terminar o colégio, não vai poder ir muito longe na vida. Para que ele possa ter uma renda, seus pais instalam no quintal de casa uma pequena fábrica de briquetes de papel e Fransje então aceita que isso provavelmente será seu trabalho pelo resto da vida.
É aí que entra Joe, sempre chacoalhando a monotonia de Fransje. Quando percebe que seu braço direito, a única parte de Fransje que se movimenta, torna-se cada vez mais forte com a atividade de prensar os briquetes, sugere que eles façam uma sociedade em campeonatos de queda de braço. O livro se divide assim entre esses dois momentos, Pluma e Espada, o cronista e o lutador, em uma referência ao caminho do samurai, descrito por Miyamoto Musashi. Joe Speedboat é portanto, a via de escape para um mundo longe de Lomark, não só no sentido físico, mas também no sentido espiritual: não é à toa que o avião acabe virando uma simbologia do caráter de Joe. Fransje o vê não apenas como um amigo, mas como um verdadeiro ídolo, pois ele sempre comemora as vitórias de Joe como um golpe contra a própria cidade e a mediocridade.
“Mais que um cara excepcional, ele era uma força libertadora. Estar perto dele dava comichões – a energia se transformava em algo palpável em suas mãos; do nada, ele tirava das mangas bombas, motocicletas de corrida e aviões, e fazia com eles malabarismos como um mágico inconsequente.”
Wieringa teve muito sucesso ao fazer a voz de Fransje. Ainda que o personagem não fale, estamos o tempo todo acompanhando o que ele pensa e esses pensamentos têm uma voz única. Infelizmente ele não consegue o mesmo com Speedboat. Seus discursos sobre máquinas, entropia e outras categorias da física soam às vezes artificiais, revelando um pouco das possíveis pesquisas do autor, e deixando de lado a naturalidade com que um jovem, por mais brilhante que seja, falaria com outros jovens.
Outro passo em falso do autor é quando resolve desenvolver a personagem PJ apenas na parte final do livro e de uma forma nada confiável: através de um livro escrito por outro personagem que não participa diretamente da história. A partir daí a personagem é julgada até o fim do livro por um slogan machista e desnecessário. Em um livro que fala tanto sobre amizade e companheirismo, teria sido mais elegante ter mostrado PJ apenas como um ser humano, deixando o julgamento para o leitor.
Com uma escrita ágil e irônica, o autor trabalha diversos temas envolventes, como a adolescência como o momento ideal para se envolver em projetos que exigem imaginação e coragem, passando por uma leve crítica ao consumismo desenfreado, simbolizado pela quantidade absurda de sucata presente em vários momentos do livro. Mas é quando retrata a pequena cidade, com pessoas com sonhos que não lhe cabem, que o livro brilha. É um história sobre movimento, sobre as tentativas de sair do lugar, sob todas as formas, e ao mesmo tempo é sobre a constatação que mesmo em pequenos lugares você pode vivenciar momentos grandiosos, contanto que esteja com as pessoas certas.
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Escolhi e recebi este livro como cortesia da editora parceira Rádio Londres.