A hora dos ruminantes – José J. Veiga

interlunio17-ruminantesManarairema é uma cidade muito pequena, em algum lugar do Brasil, que ainda vive um momento sem energia elétrica e com poucos recursos de desenvolvimento. Um dia seus moradores se deparam com um acampamento misterioso para além do rio e começam a se perguntar o que isso poderia significar, se vantagem ou ameaça. Aos poucos vão chegando a uma conclusão: a cidade não será mais a mesma, e seus habitantes, que tanta certeza tinham das coisas, agora estão tendo que se adaptar a essas mudanças. Assim inicia A hora dos ruminantes, de José J. Veiga, publicado em 1966 e considerada uma das poucas narrativas longas de realismo mágico brasileiro.

A novela divide-se em 3 partes: A chegada, quando o acampamento se instala e já se percebe o quanto alguns personagens já aceitam a nova situação; O dia dos cachorros, quando a cidade é inexplicavelmente invadida por um enorme número de cães e curiosamente o povo passa a cuidar com um certo carinho daqueles que o ameaçam; e O dia dos bois, quando a invasão é feita por tantos bois que as pessoas não conseguem nem mesmo sair de suas casas. Cada invasão representa um tipo de opressão sofrida pelos moradores de Manarairema, sendo a dos bois a mais extrema, pois ela acaba com qualquer tipo de liberdade e de coletividade, “a vida restante tinha de ser vivida dentro de cada um”.

A hora dos ruminantes pode ser visto como alegórico para diversas situações e apesar de ser geralmente considerado uma alegoria ao período de ditadura no Brasil, penso que pode ser visto como alegoria para qualquer tipo de opressão sobre uma comunidade, seja ela uma vila ou um país. Trata-se de um povo que se sente perdido por não entender por que e como as coisas acontecem e que apenas lida do jeito que pode com o medo de quem aparentemente tem mais poder. A ingenuidade perante o mistério gera medo e raiva, mas também admiração e respeito, e cada personagem dessa história vai reagir do seu jeito, exatamente como os seres humanos reagem em situações onde devem calcular o que pesa mais na balança, se a vida ou a justiça.

O texto de Veiga é leve e preciso e mistura discurso direto com indireto livre de uma forma que deixa a narrativa com muita intimidade entre leitor e personagens. O pensamento destes e sua linguagem, carregados de provérbios e dizeres populares, estão amarrados à narrativa e justificam suas ações e atitudes o tempo todo. A escolha de palavras é singular e certeira, mas ao mesmo tempo muito natural e lírica, o que deixa a leitura muito agradável.

Veiga oferece um final bonito, de esperança, mas também questionador: quando a opressão dá trégua, o que devemos fazer para que a situação não se repita? Que tipo de cercas devemos construir para que os bois não passem novamente?

“Mas os males ainda inéditos, o trabalho de passar a vida a limpo, as revisões, o desentulho… – saberiam eles aproveitar certo as lições?”

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Essa leitura faz parte do Desafio Livrada! 2015.

6 comentários sobre “A hora dos ruminantes – José J. Veiga

  1. Nossa, o livro parece ser muito, muito bom, Lua. Sua resenha ficou ótima e estimula muito a leitura.
    De repente o Veiga ressurgiu, né? É por causa dessas novas edições?
    Beijo! ^_^

  2. Li esse já faz um tempinho e gostei bastante.
    Achei interessante observar as mudanças de comportamento dos moradores diante do desconhecido, e notei que só as crianças ousam dizer a verdade.
    Não sabia que é o ano do centenário do autor. Ele merece mesmo novas edições.
    beijo!

  3. Lua, vou tentar ler esse também, parece muito interessante, gostei muito da sua resenha! Eu tenho tendência a procrastinar quando sei que se trata de realismo fantástico (preciso conhecer essa faceta da literatura), mas preciso mudar isso, sinto que posso me surpreender!

    Beijo! ❤

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