A Imortalidade – Milan Kundera

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★★★★☆ | Companhia das Letras, 2015

Diante de tantos grandes nomes que estão e ainda ficarão gravados na pedra da História por muitos séculos, a imortalidade, enquanto marca deixada para a posteridade, parece um grande atrativo, uma forma única de driblar a morte. Mas ela é realmente desejada por todos que supostamente a merecem? O mundo de hoje ainda precisa imortalizar os gênios? E o homem comum, terá direito apenas à imortalidade provisória de viver na memória das pessoas que o amam? Esse é o grande tema de A Imortalidade, romance filosófico do checo-francês Milan Kundera. Mas como não poderia ser diferente, o que já é uma característica de suas obras, neste livro o autor passeia por inúmeros outros assuntos, como o poder atual do jornalismo e da publicidade na política, o amor sentimental versus o amor físico, a obra do artista versus sua biografia, a aparência vencendo a realidade, enfim, algumas questões bem pertinentes ao nosso início de século, a despeito de ter sido publicado em 1990.

O romance traz vários planos de narrativa e o principal se concentra na personagem Agnès, uma mulher que se sente à parte do resto do mundo, com um profundo desejo de solidão. Ela é casada com Paul, um jornalista que combate a cultura de idealização dos imortais, e juntos eles têm uma filha, Brigitte. O principal contraponto de Agnès é sua irmã Laura, uma mulher extremamente dramática e intensa, e seu único refúgio são as lembranças que tem do pai, com quem se identificava.

Outro plano importante é a história dos personagens históricos Johann Wolfgang von Goethe e Bettina Brentano. Bettina, apesar de ter deixado sua própria obra, era uma espécie de groupie de Goethe, Beethoven e outros artistas de sua época, alguém que buscava ou até mesmo forçava-lhes uma intimidade para, digamos assim, beber de sua genialidade e imortalidade. Goethe também aparece em outro nível da narrativa: em uma espécie de limbo dos imortais, em que tem curiosas conversas com Ernest Hemingway sobre o peso do legado que deixaram.

Já em outro plano acompanhamos o próprio autor, como narrador-personagem, explicitando como pensa e planeja a história que está sendo contada. E ela é iniciada com a observação de um gesto: o gesto de uma senhora que, cheio de jovialidade, o inspira a compor Agnès e toda a sua história. A partir daí Kundera estabelece também uma reflexão sobre os gestos humanos, de como eles se repetem, de como algumas situações evocam outras parecidas, com pessoas diversas e distantes no tempo e no espaço, pois apesar de o número de humanos já existentes ser grande, o repertório de gestos é limitado. É através de gestos que ele costura as diversas histórias narradas no livro: um gesto de Bettina será reproduzido por Laura, um gesto de Goethe será repetido por outro personagem e assim ele vai demonstrando que a essência de cada ser humano não reside num gesto específico, eles nos falam apenas do que temos em comum, afinal só os gestos são imortais:

“São os gestos que se servem de nós; somos seus instrumentos, suas marionetes, suas encarnações.”

Com o tempo percebemos que esta esfera da narrativa em que o autor aparece pode não ser tão diferente do de seus personagens, já que estes começam a surgir nos mesmos cenários por onde o autor transita. Suas conversas com um certo Professor Avenarius criam um canal com o leitor e estabelecem o que o autor intenciona ao escrever um romance de tal forma que não possa ser resumido, contado – provavelmente justificando sua insatisfação com a adaptação cinematográfica de seu livro anterior, A Insustentável Leveza do Ser:

“Hoje em dia as pessoas vão em cima de tudo o que foi escrito para transformar em filme, em drama de televisão ou em desenho animado. Já que o essencial no romance é aquilo que não pode ser dito senão por um romance, em toda adaptação só fica o que não é essencial. Quem quer que seja suficientemente louco para hoje ainda escrever romances, deve, se quiser protegê-los com segurança, escrevê-los de maneira tal que não possam ser adaptados, em outras palavras, que não possam ser contados.”

O personagem Paul defende que a humanidade deveria parar de idolatrar os homens que carregam a aura da imortalidade. Que suas biografias, com todas as suas dores, perdas, quedas e glórias, seriam mais importantes que sua herança artística ou política, pois os aproximam do homem comum. Mas não são os grandes feitos que nos chamam a atenção para o imortal, em primeiro lugar? Seria possível deixar de enaltecer obras e autores que permanecem por séculos, ou o ser humano precisa de seus ídolos? O Hemingway de Kundera concordaria com Paul, pois mesmo depois da morte não pôde fugir da maldição de não ter mais controle sobre seu próprio eu:

“Quando me deram o prêmio Nobel, recusei-me a ir a Estocolmo. Estava pouco ligando para a imortalidade, e direi ainda mais: o dia em que constatei que ela me abraçava, o horror que senti foi pior do que o horror da morte. O homem pode pôr fim à sua vida; mas não pode pôr fim à sua imortalidade.”

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Escolhi e recebi este livro como cortesia da editora Companhia das Letras.

Essa leitura faz parte do meu Projeto Kundera.

2 comentários sobre “A Imortalidade – Milan Kundera

  1. Lua, o primeiro (e até agora único) livro que li do Kundera foi “A Festa da Insignificância”. Só o trouxe para casa porque me encantei com a edição em capa dura e a chamada “autor de A Insustentável Leveza do Ser”. Eu nunca li “A insustentável leveza do ser”, mas esse título está gravado na minha memória como algo que é bom e que eu devo ler, então me influenciou muito na compra de “A festa da insignificância” (que aliás é muito bom!). Bem, foi assim que eu descobri que gosto muito de Milan Kundera, e se é para ter livros dele, que sejam todos dessa edição linda de capa dura e ilustrações lindas.
    – Agora você entende porque eu amei o seu texto? 🙂

    Mas me conta: Você já havia lido outras obras dele?
    Um abraço,
    Mona
    http://www.literasutra.com

    1. Oi, Mona! Sim, eu já li até agora 4 livros do Kundera. Tenho um projeto de leitura de ler toda a obra dele. A Insustentável Leveza do Ser li há muito tempo, gosto muito e quero reler para o projeto, acho que você iria gostar. Beijo! =)

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