Como o soldado conserta o gramofone – Saša Stanišić

01_gramofone_interlúnioEm 1992, após a dissolução da Iugoslávia socialista, a Guerra da Bósnia ocasionou um terrível genocídio. Militares sérvios tomaram cidades da Bósnia e cometeram estupros e assassinatos, causando milhares de vítimas. É nesse contexto que os personagens de Como o soldado conserta o gramofone estão inseridos, na cidade de Visegrad, às margens do rio Drina.

“Eu venho de um país que não existe mais lá de onde eu vivi.”

Aleksandar é o seu narrador, um menino com mais ou menos 14 anos, imaginativo e sensível, com grande capacidade criadora, herdada do seu querido avô Slavko, que lhe faz um chapéu de mágico e uma varinha de condão para que ele acredite que há magia na vida.

“A graça mais valiosa é a inventividade, a maior riqueza é a fantasia.”

No entanto, já de início Aleksandar terá que enfrentar sua primeira grande prova: os artefatos que ganha do avô se perdem justamente quando ele morre e enorme é o peso da responsabilidade de resolver o que é impossível de resolver se não há magia. Ele resolve suas tristezas com seu olhar enviesado de poesia, uma poesia que nasce da ingenuidade infantil e da nostalgia sensorial: cheiros, cores, sabores e sons que vão ficando para trás por causa da guerra, mas que continuam ecoando através das palavras:

“Depois que eu tiver concedido a vovô Slavko a capacidade de voltar a viver, meu próximo golpe de mestre será dar a todo mundo a capacidade de reter ruídos. Todo mundo conseguirá colocar o vento nas folhas da cerejeira e o rumor do trovão e os latidos noturnos dos cães no verão num álbum de sons. …e assim mostraremos com orgulho nossa vida feita de sons, assim como mostramos as fotos das férias no mar Adriático. Pequenos ruídos poderão ser carregados dentro da mão fechada. Eu colocaria o riso dos dias felizes por cima da preocupação no rosto de minha mãe, por exemplo.”

A prosa de Stanišić, que se confunde com a prosa de Aleksandar, que além de narrador também tem sua vez como autor de um livro interno, é pausada e sugere tanto quanto diz. Expressa-se devagar e deixa o leitor meditar, sem que seja possível perder qualquer detalhe. Ela brinca com as próprias regras do escrever e chama atenção para o que realmente importa no texto. Sem falar de alguns capítulos que se desviam em outros gêneros, como cartas e registros telefônicos. À medida que o livro se aproxima do final, no entanto, esse estilo se modifica e infelizmente o livro perde um pouco sua poesia para um tom mais documental, mas não há dúvidas de que a grande qualidade do livro é sua linguagem.

É um romance nostálgico e melancólico, que leva o leitor para dentro da tristeza da guerra, ainda que de forma delicada – e talvez por isso mesmo dolorosa, mas que também nos leva à infância, a um jeito de olhar que se perdeu. Mesmo depois de ir embora com os pais para a Alemanha, a vida de Aleksandar está atada ao passado, aos familiares, às lembranças de ameixas e carne moída, aos amigos que ficaram enfrentando a guerra e o que veio depois dela, à memória de um momento com uma menina chamada Asija, da qual não consegue notícias, às pescarias no rio Drina e a todos os sons que ecoam desse velho gramofone, os sons de explosões e de silêncio.

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